Curupira (Má Sorte)

Quando o homem retornou a mesa, seu companheiro não precisou esperar que ele falasse nada. Estampado em seus olhos estava o mais puro assombro e ele sabia que não iriam escapar facilmente daquela enrascada.
– E aí Daniel? Você viu o número da página? – Perguntou tentando manter um tom de voz que fosse ouvido apenas pelo outro.
– Cento e vinte e dois. – Ele sussurrou em resposta. – Você estava certo! Quando eu passei pela mesa, olhei de esgueira e vi. Ele não pode estar lendo. Ninguém lê tão devagar assim. – Ele apanhou a garrafa de aguardente no centro da mesa e encheu seu copo e o do amigo. – Ele deve ter voltado de alguma forma. Está diferente, mas tenho certeza que é ele. Está apenas disfarçando.
– E se a gente atirasse nele novamente?
 – Minha arma está lá fora, no meu carro e eu não sou louco de sair pro meio do mato com essa coisa por aqui. E a sua Zeca?
 – Também. Meu carro está ainda mais longe, não deu pra passar pela porteira e eu deixei por lá mesmo.
– Zeca? – Disse o outro apanhando o copo e virando o conteúdo de um gole só. – Como é que você se meteu nessa? Eu sei que eu vim de embrulho com você. Tava lá na mata de dentro, caçando tranqüilo quando esbarrei com você e com aquilo, – ele apontou disfarçadamente para o menino que saia do banheiro e retornava para uma mesa no extremo oposto do bar – mas não sei o que aconteceu antes. Que raios você aprontou pra aborrecer o demo?
– Eu não fiz nada. Estava apenas caçando, igualzinho a você. Ele apareceu e deu-se a desgraça. – Ele apontou com o dedo por cima do ombro disfarçadamente. – Ele voltou mesmo pra mesa?
– Voltou. Saiu do banheiro, sentou e pegou o livro novamente e está fingindo ler. Mas não olhou pra cá nenhuma vez. – Daniel retirou o chapéu surrado e coçou a cabeça, parecendo fazer esforço para pensar. – E se a gente chamasse o Chico e perguntasse sobre esse garoto. Olha, pode nem ser o mesmo. Pode ser que seja daqui das redondezas e venha sempre por aqui. Se ele não freqüentasse o bar, acho que o Chico já ia ter estranhado ele também, não é?
Zeca arriscou uma olhada por cima do ombro e fitou o garoto por um instante. Ele estava sentado de lado, próximo à porta de entrada, segurava o livro na mão e parecia entretido com a leitura. A sua frente uma garrafa de refrigerante intocada repousava com o suor escorrendo devido a condensação e ao calor intenso. Parecia um rapaz comum, aproximadamente com onze ou doze anos, possivelmente filho de índios pelo tom da pele e pelo formato dos olhos. Era franzino e parecia que desabaria com um único safanão dele.
“Mas o outro parecia ainda menor e agüentou muita bala”, pensou enquanto se virava e fitava Daniel.

– É, realmente ele não parece com o outro, mas tem algo muito estranho nele e eu não sei bem qual o motivo, mas tenho uma sensação ruim quando olho pra ele. – Ele virou o resto da bebida que ainda tinha na garrafa completando os copos. – Mas vamos chamar o Chico, assim descobrimos logo se não estamos bancando os idiotas.
Erguendo a garrafa, ele chamou pelo dono do bar, olhando para a porta detrás do balcão, que fazia ligação com o interior da casa. Um instante depois o velho cruzou o batente da porta se espreguiçando. O bar ficava bem no meio do mato e era muito sossegado, pois a cidade mais próxima ficava a mais de quarenta quilômetros de distância pelo meio de trilhas e estradas de terra. Por este motivo os fregueses do velho Chico não se incomodavam quando ele tirava um cochilo no meio do atendimento. Quando ele viu a garrafa erguida, caminhou até uma prateleira do fundo e depois seguiu em direção aos dois homens trazendo uma outra igual, porém cheia.
– Chico – sussurrou Daniel, assim que o homem se inclinou sobre a mesa para deixar a garrafa – você conhece o garoto que está sentado ali, perto da porta?


O velho olhou na direção da porta e depois fitou Daniel com ar de quem acabara de ouviu uma piada dentro de uma igreja e se esforçava para não rir. Quando reparou que os dois começaram a ficar agitados, puxou uma cadeira de uma mesa próxima e se sentou próximo dos dois.
– Vocês buliram com o menino? – Perguntou ainda com um sorriso zombeteiro no rosto. – Buliram?
Os dois se entreolharam por um instante e Zeca acabou por tomar a dianteira.
– Velho Chico, nós só queremos saber se você conhece o menino. Ele costuma vir sempre aqui?
O velho tirou uma caixa de fósforos e um cigarro de palha surrado do bolso da camisa, deu uma leve ajeitada nele e acendeu dando uma baforada. Puxou a cadeira mais para perto da mesa e examinou os dois atentamente, com um olhar de quem decidia se devia ou não abrir a boca. Olhou para o garoto e por fim relaxou novamente, recostando-se na cadeira.
– Bem, espero que não tenham bulido. É má sorte! É muita má sorte. – Ele apontou com o cigarro na direção da porta. – O menino vem sempre aqui. Não todo dia, mas está sempre por aqui, principalmente quando tem caçador pela região. Chega quietinho, senta ali com um livro ou uma revista e passa horas e horas lendo. Eu levo o refrigerante e ele só se dá conta depois de um bom tempo, aí bebe e vai-se embora.
Os dois deram um suspiro e Daniel apanhou a garrafa, abrindo e completando os copos, visivelmente aliviado.
– Então é um garoto comum. – Falou Zeca arriscando uma olhada por cima do ombro, em direção ao garoto. – E porque a má sorte Chico? Digo, caso nós tivéssemos bulido com o menino?
– Eu disse que ele vem sempre aqui, mas não disse que era um menino comum.
O velho olhou no fundo dos olhos de Zeca e isso lhe fez sentir um arrepio na coluna, como se tivessem lhe assoprado a nuca. Ele foi pegar o copo para dar um trago e viu que os pelos de seu braço estavam todos em pé. Quando aproximou o copo da boca, a mão tremia e deixou tudo escorregar para o colo. O copo não quebrou por pouco, pois o velho conseguiu segurar antes que rolasse em seu colo e fosse para o chão.
– Má sorte! E eu tenho certeza que vai piorar. – O velho pousou o copo sobre a mesa enquanto Zeca passava as mãos na camisa e na calça na tentativa inútil de secar um pouco as mesmas. – Bem, como pelo visto os dois aqui se encrencaram com o menino, vou ao menos dizer o que se pode fazer pra coisa não entornar de vez.
Os dois olharam preocupados para o velho e baixaram as cabeças até quase tocarem na mesa.
– Há vinte anos atrás, eu morava atrás da campina grande e volta e meia vinha pra essas bandas caçar paca e capivara. Naquela época tinha muita capivara por aqui e perto do rio sempre apareciam várias pacas. Caça boa. Época boa. Eu caçava sempre sozinho. Nada de companhia pra espantar os bichos e pra me fazer ir pra onde eu não queria. Sozinho eu podia passar dois, três, quantos dias eu quisesse por aqui. Dormia nas árvores que nem macaco por causa das onças e não ligava pra conforto; até hoje não ligo.
Ele apontou ao seu redor e deu de ombros.
– Na bem da verdade, minha desgraça se deu justamente numa noite em que eu estava trepado em uma árvore, um olho fechado e outro meio aberto, como eu sempre procurava dormir, afinal as danadas das jaguatiricas tinham uma mania desgraçada de trepar em árvores. A sombra passou um instante antes do meu olho meio aberto se fechar e ficou zanzando pela minha cabeça; despertei rapidamente e mirei o lugar no meio do mato onde eu vi a sombra passando. Devagarzinho peguei minha espingarda e mirei na direção da moita mais a frente, já prevendo que tinha bicho por lá. Apurei os meus ouvidos e o barulho que vinha de lá era um ronque-fuça bem conhecido. Certamente era uma capivara grande e gorda; fiz mira e atirei no primeiro lampejo que enxerguei na folhagem. Acertei, é claro. O bicho berrou, correu uns cinco metros e tombou. Pela revoada de folhas eu sabia que era grande e que pelo visto eu ia voltar pra casa naquela manhã mesmo.
– Arribei da árvore e fui dar com o bicho lá embaixo. Era grande mesmo a danada da capivara. Acho que até hoje não vi uma maior do que aquela e fiquei até triste, porque ia ter que pelar a bicha ali mesmo e levar só a parte limpa, senão não agüentava com o peso. Desperdício, mas fazer o que? Dei duas cutucadas com a botina pra ter certeza que ela não ia voltar a pular e quando tive certeza de que tava bem morta, ajoelhei e puxei meu facão pra começar a limpeza. Não ia demorar muito pra amanhecer e eu queria voltar o mais cedo que desse pra manter a carne fresca. Puxei o couro e ia dar o primeiro traçado, quando ouvi um grito vindo do meio do mato: “Ecou, ecou, ecou”. O grito me gelou a espinha e eu levantei de um pulo só. Sabia que não era grito de bicho e já tinha ouvido história suficientes pra saber o que era aquilo. A cada grito que eu ouvia eles iam ficando mais claros e eu não pensei duas vezes; enfiei a faca na cintura e saltei pra árvore onde eu estava metido havia pouco.
Ele parou a narração pra retirar um outro cigarro de palha do bolso e substituiu o que havia se apagado há pouco. Os dois homens ficaram tensos, certamente pela semelhança da história com suas próprias, mas preferiram ficar calados e aguardaram pacientemente até que ele prosseguisse.
– Subi mais rápido que uma suçuarana atrás de um gambá. Mas quando cheguei lá em cima o grito já estava tão perto que cheguei a olhar pra trás crente que vinha do pé da árvore. Não vinha, mas estava bem perto mesmo. Quando eu olhei pro lugar onde tinha deixado a capivara, pude avistar na penumbra que alguém se aproximava. Na verdade eu vi uma das coisas mais assustadoras de toda minha vida.
– Você viu um menino pequeno montado em uma capivara. Cabelos vermelhos e olhos verdes. – Falou Daniel, interrompendo-o sem poder controlar o impulso.
– Sim, foi quase isso o que eu vi. Na verdade eu vi um tapuio montado em um porco-do-mato. Era jovem e junto dele vinha uma vara de sete porcos-do-mato. É claro que o menino não era assustador, mas a cena era por demais. Ele continuava gritando aquele “ecou”, e só parou quando chegou à frente da capivara tombada. Desmontou do porco-do-mato e chegou perto do bicho. Quando ele começou a cheirar o ar olhando ao redor, não tive dúvida e meti uma bala na espingarda. Ele olhou pra mim no topo da árvore. Eu estava escondido e sei que é difícil de acreditar que ele tenha me visto, mas Deus sabe que o olho dele bateu bem de encontro com o meu. Ele me viu, sim senhor.
– E você atirou nele? – Agora foi a vez de o Zeca interromper a conversa.
– Se tivesse atirado, não ia estar aqui contando essa história. – Respondeu rapidamente sabendo que os dois iriam sentir o peso das palavras. – Mas não se preocupem com o garoto ali atrás. Esse não é o curumim que vocês acertaram lá no mato. Sim, eu sei pela cara de vocês que acertaram no “coisinha”, a culpa e o medo estão estampados nos seus olhos. Má sorte, eu garanto. Mas como o que está feito, feito está, vou dizer o que eu fiz pra remediar a história. Posso?
Ele pegou o copo do Zeca e virou de um só gole.
– Pois bem. Até hoje não sei bem o porquê acabei por fazer, mas resolvi descer da árvore. Foi um impulso e tenho certeza que desci mais por medo do que por outra coisa. Eu sabia que ele tinha me visto e eu não tinha muito que fazer lá em cima; no chão ainda poderia correr. Desci já balbuciando algumas desculpas e frases sem sentido sobre a capivara morta. Disse que era pra comer e uma porção de bobagens e quando achei que o curumim ia ficar bravo, ele desatou a rir.
– Rir de você? – Daniel perguntou.
– É, ele começou a rir de mim. Depois chegou perto da capivara e começou a gritar com ela em uma língua que eu não sei se era indígena ou algo perto disso. Gritava e chutava a capivara, como se brigasse com ela. Eu falei como ele se parecia? Eu pergunto por que pra cada um que o vê ele é um pouco diferente. Pra mim ele parecia um menino, meio caboclo meio índio, cabelo cor-de-fogo e pouco mais alto que a minha cintura, só que troncudo e de rosto cheio. A boca era grande e quando ele gritava com a capivara eu via uma porção de dentes podres e pretejando lá dentro. Eu já estava com medo e segurava a espingarda com força, quando não me contive e urinei nas calças. Eu sei que não vão rir de mim, mas eu urinei nas calças mesmo. A capivara que ele chutava deu uma bufada e se colocou de pé. Em um minuto estava morta, no outro estava de pé. Foi assim mesmo e antes que eu acabasse de me molhar ela saiu em debandada pela mata adentro.
– A capivara estava morta mesmo? Você tem certeza?
O velho olhou para Daniel com um olhar paternal, como se olhasse para uma criança que fez uma pergunta estúpida e sorriu.
– Como eu dizia, a capivara saiu correndo pro meio do mato e eu fiquei lá, as pernas congeladas, sem poder me mexer. O menino, no entanto ria e apontava pras minhas calças molhadas. Eu estava ao mesmo tempo envergonhado e aliviado. Envergonhado por ter molhado as calças e aliviado porque ele estava rindo. Eu acabei por me juntar a ele depois de um tempo, rindo da situação e do meu medo, até que ele parou e falou comigo. Disse apenas “fumo” e me estendeu a mão. Eu fiquei durante um tempo perdido, sem saber o que fazer, até que entendi que ele queria um pouco de fumo. Eu não tinha e ele pareceu ficar furioso quando eu lhe disse isso e eu sabia que ia me rogar uma praga ou algo que o valha. Tenho certeza que cheguei a me encolher um pouco e que segurei a arma com mais força, mas foi aí que algum anjo botou a mão no meu ombro. Na verdade, foi ele ali quem botou. – Disse apontando com o queixo na direção do menino próximo da porta. – Eu não sei de onde ele veio, mas acreditem, chegou a boa hora. Ele é um deles, um espírito. É chamado de Pai-do-mato.
– E o outro é o Curupira. – Disse Zeca rindo.
– Ele chegou perto e começou a conversar com o outro em uma língua estranha, meio índio, sei lá. – Ele continuou ignorando as risadas do Zeca. – Por fim, quando achei que os dois iam brigar, este aqui chegou perto e me pediu pra estender a mão. Falou que precisava de um pouco de sangue meu. Falou que ou eu dava um pouco de sangue pro coisinha, ou dava o fumo que ele sabia que eu não tinha.
– Você encontrou foi o chupa-cabras Chico, não era o Curupira. – Insistia Zeca, agora tendo certeza que a história era uma piada para assustar ele e o Daniel.
– Bem, eu dei um talho na mão e deixei o sangue cair no chão. Eu não sabia o que fazer. Então o coisinha chegou perto e começou a lamber as folhas onde o sangue pingava. Eu queria enrolar um trapo na mão, mas o Pai-do-mato não deixou, ele disse que eu só devia parar quando o outro ficasse contente e fosse embora. Tive que dar mais dois talhos na minha mão, mas por fim ele se encheu e foi-se embora. Ele me trouxe até essa casa, na época abandonada e eu acabei me encostando por aqui. No começo eu ia e vinha da campina para cá, depois de um tempo, acabei me mudando e fiquei por aqui mesmo.
Daniel estava horrorizado com a história e não conseguia tirar os olhos do garoto perto da porta. Já o Zeca se levantou rindo muito.
– Olha só a cara do Daniel. – Disse apontando pro outro e rindo. – Foi uma boa história Chico, boa mesmo. – Tirou a carteira do bolso e jogou duas notas sobre a mesa. – O troco fica pela história. Eu vou andando.
Daniel ameaçou dizer alguma coisa, mas na hora em que ia abrindo a boca, o garoto fez balançou a cabeça em negativa. Não chegou a tirar os olhos do livro, mas Daniel compreendeu que aquele era um “não” de “fique quieto” e deixe ele ir.
– Você vem Daniel? – Zeca falou já se dirigindo para a porta.
– Acho que vou pernoitar aqui se o Chico me arrumar um canto – ele olhou para o velho que sorriu – e acho que você também não devia ir embora agora.
– Deixa disso homem. – Ele deu as costas e foi embora. Ao passar do lado do garoto, ainda olhou para ele e passou a mão em sua cabeça antes de sair rindo.
Cerca de dez minutos depois o garoto apanhou a garrafa de refrigerante, bebeu e foi embora para alívio de Daniel.
No dia seguinte o velho Chico e ele levantaram antes do sol estar alto no céu e foram para o lado de fora da casa. A vasilha que Daniel enchera de sangue estava completamente vazia e ao lado dela ainda dava pra notar pequenas pegadas. Chico o acompanhou até a porteira do terreno e não foi espanto para nenhum dos dois quando viram que na caçamba não havia nenhum animal; tudo o que havia restado deles eram algumas pegadas que seguiam junto com as de um menino que parecia estar andando de costas.
Três quilômetros a frente, Daniel encontrou o carro do Zeca encostado na mata que beirava a estrada. Reduziu, olhou para dentro e não viu nada. Nem sinal do Zeca nem das capivaras. Resolveu não descer do carro e ir embora. Um pouco mais a frente, viu duas figuras paradas no meio do mato. Uma delas, ele sabia ser o garoto do dia anterior, o que o velho Chico chamava de Pai-do-mato. Já a outra ele ficou com medo de olhar atentamente, mas tinha certeza que era o Curupira. O mesmo menino-demônio em que atirara e certamente era o mesmo que tomara o seu sangue e sabe-se lá Deus o que havia feito com o Zeca. Passou a mão enfaixada sobre o pacote de fumo que Chico lhe dera e que ele cuidadosamente levava sobre o painel da caminhonete. Era mais fácil ter um pouco de fumo ao alcance da mão do que ficar se retalhando depois. Acelerou e deixou os dois para trás, ao menos fisicamente, pois em pensamento eles o seguiriam por muito tempo.
Não sabia se voltaria aquele lugar novamente, mas tinha certeza que nunca mais iria caçar na vida. Caçar causava muita má sorte.
...Fim...


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